CORTELLA, Mário Sérgio.
VISÃO GERAL
O livro tem o objetivo de demonstrar
que o conhecimento é uma construção cultural e que a escola tem um
comprometimento político, de caráter ao mesmo tempo conservador e inovador.
Inicia com uma visão sobre o conhecimento para a seguir rebater a ideia de que
o conhecimento seja uma “descoberta”. Em continuação, volta sua atenção para a
escola e suas práticas, enfatizando o sentido social do trabalho pedagógico e
acenando com a possibilidade do conhecimento como ferramenta da liberdade e do
poder de convivência entre iguais.
Introdução – em nenhum momento da história republicana a frase “A educação está em
crise” deixou de ser dita, pois não atingimos ainda patamares mínimos de uma
justiça social
compatível com a riqueza produzida pelo país e usufruída por uma minoria. A crise é de todos os setores sociais, mas a da educação tem raízes específicas: confronto entre ensino confessional e laico; conteúdos e metodologias; novas ideologias; democratização do acesso; gestão democrática; educação geral versus formação especial; educação de jovens e adultos; escolaridade reduzida; público versus privado; baixa qualidade de ensino; despreparo dos educadores; movimentos corporativos ineficientes; evasão e retenção escolar.
compatível com a riqueza produzida pelo país e usufruída por uma minoria. A crise é de todos os setores sociais, mas a da educação tem raízes específicas: confronto entre ensino confessional e laico; conteúdos e metodologias; novas ideologias; democratização do acesso; gestão democrática; educação geral versus formação especial; educação de jovens e adultos; escolaridade reduzida; público versus privado; baixa qualidade de ensino; despreparo dos educadores; movimentos corporativos ineficientes; evasão e retenção escolar.
1. Gênese recente de uma
antiga crise e atuação dos educadores - A urbanização dos
últimos 30 anos trouxe para as cidades uma demanda sem precedentes por serviços
públicos. No entanto, o modelo econômico pós-64 privilegiou a produção
capitalista industrial, direcionando os investimentos para a infra-estrutura e,
com a ausência de investimentos sociais, houve uma demanda explosiva na
Educação, a depauperação do instrumental didático-pedagógico, a entrada de
educadores sem a formação apropriada, a diminuição salarial, a imposição de um
modelo de formação profissional e compulsória e centralização dos recursos
orçamentários.
2. Educação brasileira,
epistemologia e política: por que repensar fundamentos dessa articulação ?
É preciso pensar uma nova qualidade para uma nova escola, numa sociedade que
elegeu a educação como um direito objetivo da cidadania e por isso rever a
ligação entre Educação, Epistemologia e Política. A democratização do acesso e
a permanência devem ser encaradas como sinal de qualidade social: a qualidade
em educação passa, necessariamente, pela quantidade. A formação do educador
precisa abranger o aspecto técnico em uma área do saber, a dimensão pedagógica
do ensino, a democratização da relação professor-aluno/entre instâncias
dirigentes/comunidades e a democratização do saber. Em resumo, são três pólos:
uma sólida base científica, a formação crítica de cidadania e solidariedade de
classe social. A escola pública, aí, deixa de ser um local onde o trabalhador
simplesmente aprende o seu cotidiano profissional para ser uma nova perspectiva
de realidade social. Há a necessidade de uma reorientação curricular que parta
da realidade, para superá-la e usar os conhecimentos como ferramenta da
mudança.
Capítulo 1 – Humanidade, Cultura e
Conhecimento (p. 21-54)
Atuar em educação é lidar com formação
e informação; é trabalhar com o conhecimento e que, embora se privilegie o
extremamente recente (historicamente falando) científico, abrange também o
estético, o religioso, o afetivo.
1. O que significa ser humano ? desde Aristóteles (o homem é um animal racional) e Platão (um bípede
implume), passando por Fernando Pessoa (um cadáver adiado), muitas foram as
definições que procuraram capturar a essencialidade da natureza humana. O que
há de comum é que todas tentam identificar o humano e dar a este uma
identidade, uma definição (finis = fronteira). A indagação sobre a razão de
sermos e nossa origem e destino (o sentido
2/10 da existência) é um tema
presente em toda a História. A resposta, porém, parece cada vez mais longe, o
que é uma das características do conhecimento (é impossível esgotá-lo ou “só
sei que nada sei” – Sócrates). Essa premissa nos leva a pensar o conhecimento
como algo a ser revelado, uma descoberta. De forma caricatural, podemos
responder à questão quem sou eu assim: sou um indivíduo entre outros 5,5 bilhões,
pertencente a uma única espécie entre outras 30 milhões diferentes, vivendo em
um planetinha, que gira em torno de uma estrelinha entre outras 100 bilhões,
que compõem uma mera galáxia em meio a outras 100 bilhões, presente em um dos
universos existentes, cilíndrico e que se expande há 15 bilhões de anos... Era
menos instável viver na Idade Média, quando tudo estava em “ordem”: a Terra no
centro do Universo, o Homem no centro da Terra, a Alma no centro do Homem e
Deus no centro da Alma. Foram os 500 anos mais recentes que nos
“descentralizaram”, com Copérnico, Galileu, Darwin, Freud e outros. Afinal o
que é, para nós, a vida, senão o intervalo entre nascer e morrer ? Essa
constatação nos torna únicos: o homem é o único animal que sabe que vai morrer e,
por isso, não é de estranhar a sensação de angústia de muitos. Albert Camus já
explicava que o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é. Porque
não faz sentido, nós o construímos.
2. Um passeio pelas nossas origens. Nosso estágio atual é fruto de uma evolução singular: em relação ao meio
ambiente, não somos especialistas em nada, nossa estrutura orgânica é débil e
frágil, pouca força física, pouca velocidade de deslocamento, a pele é pouco
resistente ao clima e agressões, não nadamos bem e não voamos, não resistimos
mais do que alguns dias sem água e alimento, nossa infância é muito demorada e
temos que ser cuidados por longo tempo. Num planeta de extremos como o nosso,
se vivêssemos apenas do nosso “equipamento natural”, seríamos muitos menos e
habitaríamos uns poucos locais. Por não sermos especializados, tornamo-nos um
animal que teve que se fazer, se construir e construir o próprio ambiente.
Ainda com base numa teoria da evolução, ao descer das árvores, nossos
ancestrais hominídeos tiveram de adaptar-se: uma postura ereta (que libera as
mãos, aumenta a velocidade e permite ver de mais longe os perigos), o uso do
polegar opositor (habilidade de preensão) e a expansão do volume da massa
encefálica (e um córtex integrador que equilibra a necessidade de sangue na
parte superior do corpo pela posição ereta). Foi uma maturação lenta que nos
obrigou a permanecer mais tempo sendo cuidados e convivendo com os adultos da
espécie. Com a criação de um ambiente próprio, nos tornamos um “produzido
produtor do que o produz”, um ambiente humano por nós produzido e no qual somos
produzidos, ao qual chamamos cultura.
3. Cultura: o mundo humano. Adaptar-se significa estar recluso a uma posição específica; é
conformar-se (aceitar e ocupar a forma), submeter-se, por isso, ao ter de
buscar tudo que precisamos, romper a acomodação e enfrentar a realidade passa a
ser uma questão de necessidade, não de liberdade. Que ferramenta temos? Não é a
racionalidade, pois não basta pensar para que as coisas aconteçam. Nossa interferência
no mundo se dá pela ação transformadora consciente, ou seja, uma capacidade de
agir intencionalmente em busca de uma mudança no ambiente que nos favoreça. A
isso se chama trabalho ou práxis e seu fruto chama-se cultura: o conjunto dos
resultados da ação do humano sobre o mundo por intermédio do trabalho. Assim,
nenhum ser humano é desprovido de cultura, pois nela somos socialmente
formados: o homem não nasce humano mas torna-se humano na vida social e
histórica da cultura, um processo de humanização. Começa a cultura, começa o
homem; começa o homem, começa a cultura. Os resultados são de duas ordens: as
idéias e as coisas, ambas duplas e a partir de necessidades diversas: os
produtos materiais têm uma idealização (é preciso pensá-las antes) e os produtos
ideais tem uma materialidade (partem da realidade). Porque nos são úteis, as
chamamos bens, é necessário reproduzi-los e, para isso, criamos outros bens: há
então bens de consumo e bens de produção. O mais importante bem de produção é o
Humano e, nele, a Cultura, que, por não ter transmissão genética (não se nasce
sabendo), precisa ser recriada e superada. Outro bem de produção básico é o
conhecimento (o entendimento, averiguação e interpretação sobre a realidade) e
a educação é o veículo que o transporta.
4. Conhecimentos e valores: fronteiras da não-neutralidade. Manter-se vivo é intenção de todo ser
vivo, mas, para o ser humano, só sobreviver com base nos conhecimentos é
3/10 insuficiente: é preciso que a
vida valha a pena, e, para isso, a cultura tem produtos ideais como os valores,
que dão sentido (significado e direção) e estabelecem uma ordem e um
posicionamento no mundo. Constituem uma moldura que abrange uma visão de mundo
(compreensão da realidade), uma informação (que dê forma aos conhecimentos) e
conceitos (entendimentos). Entretanto, valores, conhecimentos e conceitos (e
pré-conceitos) devem mudar porque ser humano é ser capaz de ser diferente. O
significado dessas referências não é do mesmo modo para todos, sempre, pois é
moldado pela cultura, pela sociedade e pela história dessa cultura, ou seja,
todo símbolo (conhecimentos e valores) é relativo e não pode ser examinado por
si só. Embora a individualidade gere um ponto de vista particular sobre isso
tudo, a construção é coletiva, o que implica em uma vida política onde se
negocia, produz e conquista significado. Por isso a produção dos valores não é
neutra, dependente do poder de quem possui. A posição de predominância social
significa, então, ter seus valores e conhecimentos difundidos e aceitos pela
maioria como se fossem próprios ou universais, seja por imposição ou
convencimento. O canal de conservação e inovação são as instituições sociais,
os responsáveis pelos processos educativos da longa infância humana. A educação
assim, além de ser basal, divide-se em vivencial/espontânea (vivendo e
aprendendo) e intencional/propositada (deliberada, em locais determinados com
instrumentos específicos). Por isso, os processos pedagógicos não são neutros,
envolvidos que estão na conservação ou na inovação do grupo. Ver além do
próprio grupo, história, visão, conceito, significa uma visão de alteridade que
permite identificar no outro (e em nós mesmos) o caráter múltiplo da
Humanidade. É superar a obsessão evolucionista de que o passado é sinônimo de atraso,
a verdade uma conquista inevitável e a ciência a redenção da humanidade.... Não
há um produto acabado, mas por construir.
Capítulo 2. Conhecimento e verdade: a
matriz da noção de descoberta. (pág. 55-100) Todo
educador tem uma interpretação, nem sempre consciente e reflexiva, sobre o
conhecimento: o que é, de onde vem e como chegar até ele. Fala-se aqui de uma
“teoria” do conhecimento”: antes gnosiologia (de gnosis=conhecimento), depois
filosofia da Ciência e mais recentemente, epistemologia (episteme=ciência).
Também nos preocupamos em julgar se o conhecimento é válido ou correto, ou seu
valor de Verdade. A noção mais presente no nossos sistema educacional é o que
entende o Conhecimento ou a Verdade como descoberta. Falar de Verdade é
complexo, pois raízes ocidentais e construções históricas de sentido a
relativizaram. Etimologicamente, verdade vem do latim veritate, com radical
verus (certo, correto). Veritate, por sua vez, em grego, era alétheia, ou a
(não) létho (esquecer). Desse ponto de vista, verdade tem a idéia de
não-esquecível, não-velado. O que não se esquece é o que se vê, daí a noção de
que a Verdade precisa ser vista ou desvelada ou descoberta. Surge no período
clássico grego (séculos V e IV a.C.), com Platão.
1. Elos históricos do paradigma grego. A maioria dos nossos parâmetros lingüísticos, estéticos, políticos,
filosóficos e científicos têm como matriz inicial a civilização grega da
Antiguidade, à qual se somou o legado moral e religioso judaico-cristão e, ainda,
a experiência da Roma Antiga no campo do Direito e do Estado. Em função de seu
relevo montanhoso e situado na passagem para o oriente asiático e europeu, os
gregos tiveram contato com outros povos e tornaram-se mais permeáveis à
absorção de conteúdos de outras culturas. Não só a geografia mas também as
dominações por outros impérios difundiram as idéias nascidas na Grécia:.
Pode-se dividir a formação da sociedade grega em quatro períodos:
- pré-homérico: onde grupos de pastores fundam núcleos urbanos que se
tornam hegemônicos até que no século XII a.C. um outro povo nômade, os dóricos,
os dispersaram e a população se agrupou em unidades familiares chamadas genos.
- Homérico: em duas fases – na
primeira, o agropastoreio por genos (grupos familiares auto-suficientes, com
posse coletiva e distribuição igualitária dos bens e da produção, chefiados
pelo pai) que vai se desintegrando por uma luta por mais terras. Os chefes com
mais terras, poder militar, religioso e jurídico tornaram-se uma aristocracia (áristos,
o melhor + kratia, domínio) e se associaram para proteção mútua, fazendo
surgir as polis (cidades-estados) das quais os pequenos proprietários passaram
a depender economicamente.
- Arcaico: consolidam-se as
cidades-estados, principalmente Esparta, Tebas, Corinto e Atenas. Esta última,
inicialmente agrícola, com o comércio e o artesanato crescendo, provocou uma
disputa política que, somada à pobreza crescente dos povos das redondezas,
provocou inúmeras reformas legislativas, governos monárquicos e oligárquicos,
tiranias e uma nova forma de governo chamada democracia.
- Clássico: Implantada por Clístenes no século VI a.C., a democracia
repartiu a polis e redondezas em unidades políticas (demos), compostas por
todos os cidadãos (apenas os homens gregos, adultos e livres, ou cerca de 10%
da população: ficam de fora as mulheres, jovens, crianças, estrangeiros e
escravos). A harmonia interna duradoura de Atenas deu maior solidez às
instituições mas não garantiu a hegemonia por muito tempo. As cidades-estados,
por suas lutas entre si e guerras externas, enfraqueceram a ponto de tornarem
fácil a dominação macedônica no século IV a.C..
2. O percurso das indagações
filosóficas. A produção do conhecimento em cada
período será diferente. Nos períodos pré-homérico e homérico, articulam-se num
eixo central: as origens do povo e do Cosmos, de onde surgem os mitos. No
período arcaico, pela alteração da produção e das relações sociais, não basta
apenas saber de onde vem o mundo mas como é que funciona. Nesse período, a produção
excedente e o uso do trabalho escravo fizeram aumentar a riqueza da
aristocracia e de seu tempo livre, o skholé ou ócio. Com isso, surge um tipo
específico de pensamento metódico e sistemático que não precisa estar sujeito a
ser aplicado, ao qual poderiam se dedicar os filósofos (philos, afeição por +
sophia, sabedoria). São exemplos Tales de Mileto (“pai da Filosofia”, a água
como essência da natureza); Pitágoras (os números eram a essência de tudo,
inclusive as almas); Heráclito (a realidade é uma mudança contínua e a harmonia
o confronto entre os opostos); Parmênides (a verdade é uma e imutável e a
mudança é uma ilusão dos sentidos); Empédocles (que associou a realidade a
quatro elementos imutáveis e indestrutíveis – água, terra, fogo e ar) e Anaxágoras
(a realidade é formada por partículas diversas que tinham cada uma e todas as
mesmas características do todo, ordenadas e mudadas por uma Inteligência
Superior).
As preocupações, nota-se, giravam em
torno da ideia da percepção dos componentes da realidade, se estável ou
passageira, e de questões do tipo : onde está a Verdade ? Com as mudanças da
organização da sociedade e a disputa entre os aristocratas e os comerciantes,
aqueles tinham mais ócio e estes mais negócio (neg-otium, negar o ócio). Para poder
votar nas assembleias dos demos, era preciso ter tempo livre, e os
comerciantes, que não o tinham, contrataram pensadores gregos ou estrangeiros
para que os ensinassem: os sofistas , ridicularizados pela aristocracia, que
considerava indigno o trabalho intelectual mediante pagamento. Os sofistas
romperam com o acreditar em verdades absolutas e situaram a linguagem como uma
mera simbolização.
3. A presença de Sócrates. Afinal, onde está a Verdade? (ubi veritas?): alguém vai até a tribuna da
praça dos debates (a ágora) defende uma idéia e convence as pessoas; inverte os
argumentos e obtém concordância. Surge Sócrates, nas obras de Xenofonte e
Platão. É dificílimo distinguir as teorias socráticas das platônicas: a escrita
em forma de diálogos facilitava a argumentação, o encadeamento de raciocínios e
o exercício de um tipo de debate (dialética) no qual idéias contrárias eram
confrontadas. Sócrates (que vivia em meio à aristocracia) sempre conseguiu
vitórias sobre os sofistas. Sócrates dedicará boa parte de sua reflexão num
problema: como estabelecer verdades que fossem válidas para todas as pessoas.
Para ele, os conhecimentos nos chegam por dois caminhos: os sentidos e a razão.
São confiáveis? Não, pois nos enganam (Descartes, mais tarde, retoma essa análise).
Ao consultar os deuses sobre isso, no oráculo de Delfos, vê, no templo, muitas
inscrições gravadas desde o período arcaico, entre elas uma: conhece-te a
ti mesmo, que assume como sendo a resposta à sua indagação. Onde está a Verdade
? em nós. Mas isto não significa que cada um tem uma Verdade; é a Verdade que
está em cada um. A questão fica: se a Verdade está em cada um, se, como
mortais, não somos seus geradores e, ainda assim, ela chegou até dentro de nós,
quem a colocou aí ? Disso se encarregou Platão, após a morte de Sócrates,
condenado por suas idéias tanto pelos aristocratas incomodados como pelos
comerciantes criticados em sua fragilidade de idéias.
4. A síntese platônica. O nobre Platão (ou Arístocles), aluno dos 20 aos 28 anos de Sócrates,
abandonou a polis por mais de 10 anos em função da morte do seu professor. Ao
voltar, fundou a Academia (num bosque dedicado a Acádemos, um herói mitológico)
e nela ensinou até morrer aos 75 anos. Em 50 anos, buscou elaborar uma síntese
das tendências filosóficas anteriores, de modo a compatibilizar a busca da
explicação da realidade como um todo e o pensamento socrático, voltado para o
Homem. O primeiro passo é a cosmogonia (origem do mundo), na qual Platão retoma
alguns mitos antigos e os reorganiza de modo mais filosófico: um deus ordenador
(um demiurgo, de demós, povo+ ergon, trabalho, ou artesão autônomo) organiza o
caos (confusão) e o transforma em cosmo (universo). Ele modelou uma
matéria-prima que já existia, baseado em originais ou eídos (idéias ou verdades).
Assim, as essências ou verdades são anteriores à existência do mundo, não
pertencem a ele e, por isso, não são materiais, mas eternas e imutáveis. Com
essa cosmogonia, forma-se uma cosmologia com sentido próprio: há dois mundos: o
sensível (das coisas, das aparências, das cópias), material, finito e
imperfeito, uma imitação do inteligível (das idéias, das formas, das verdades,
dos originais), imaterial, eterno e perfeito. O humano participa dos dois
mundos: a essência está na alma e a matéria no corpo. Como e por que, então,
cada alma veio parar aqui ? porque, em alguma situação no mundo das idéias,
erramos e fomos castigados pelos deuses.
A queda se explica: nossa alma
(essência) é uma charrete guiada por um condutor (razão) e puxada por dois
cavalos; um é bom (nossa vontade) e o outro é mau (desejo por prazeres
materiais). Deve-se levar firmemente a charrete para cima (ascese), controlando
os dois cavalos para a morada dos deuses. Se a razão se descontrola e um dos
cavalos puxa para seu próprio lado a charrete se desgoverna e desaba. O castigo
é encarnar-se e ficar aprisionado. Em Fedro, há uma hierarquia em função do
quanto as almas chegaram perto das verdades: o que chegou mais perto será
filósofo, depois um rei legislador, o terceiro um político e assim por diante
até ter de viver como mulher, estrangeiro, escravo... Encarna-se para purificar
a alma e o corpo, morada terrena de uma alma exilada, sofre necessidades e
dores, precisa libertá-la. Ao deixar o corpo com a morte, a liberdade estaria
vinculada ao quanto se purificou nesta vida. Se a alma já conheceu a verdade,
as esqueceu ao ganhar um corpo, por isso é preciso re-conhecer, recordar,
conhecer é des-cobrir. Quem auxilia nessa maiêutica (“parto”) é o filósofo,
cuja obrigação é levar os cidadãos a desocultação das verdades. Portanto,
quanto mais se dedicou à skholé, mais perto chegará dos deuses, caso contrário
voltará. Tudo isso justifica a sociedade na qual vivia Platão e da qual era
membro proeminente. Nenhuma teoria é neutra, como nenhum método pedagógico
também: ambos têm raízes no momento histórico, político e econômico em meio aos
quais são formulados.
5. Ressonâncias. A escravidão não é responsabilidade dos que são escravos, foi castigo
dos deuses; a direção política é dos filósofos e o ideal é um governo
aristocrático (dos melhores); as verdades não são deste mundo e só a razão pode
descobri-las, são metafísicas (metà, além + physikon, físico, de physis,
natureza); as verdades independem dos humanos, as idéias têm uma existência
imaterial autônoma e própria. Essa herança influenciou o Cristianismo
(Agostinho cristianiza esse pensamento e justifica o poder de dez séculos da
Igreja Católica no ocidente) e embasa a idéia de conhecimento como descoberta.
Aristóteles, aluno de Platão por 20 anos, se contrapôs a Platão quanto ao
método de conhecimento, não quanto ao caráter metafísico das verdades. Após
alguns anos fora, torna-se preceptor de Alexandre por 6 anos e funda sua
própria escola (num bosque dedicado a Apolo Liceios, deus dos pastores),o
Liceu. Para Aristóteles, os dois mundos se juntam na realidade, então a verdade
não está no mundo das idéias mas aqui mesmo, onde matéria e
forma se unem. Platão é um
racionalista, a razão independe da experiência deste mundo; Aristóteles é um
empirista, o conhecimento vem da experimentação e observação do mundo, sendo a
razão a ferramenta afiada pela lógica.
Na Idade Média, com o poder nas mãos da
Igreja Católica, a visão platônica se sobrepõe à Aristotélica, que foi mais
apropriada por filósofos árabes e judeus. Do século V ao IX, a Filosofia e a
Teologia ocidentais foram feitas pelos padres (período Patrístico). Então,
alguns mosteiros e conventos montaram escolas e, no século XI, surge a
Universidade de Bolonha, onde não só os padres, entre eles Tomás de Aquino, mas
também leigos estudam (período Escolástico). Com o esgotamento do modo de
produção feudal, no século XII, passa a não ser suficiente ter fé na revelação
para ter conhecimento: Aristóteles volta à cena (embora com os 700 anos de
dominação ibérica nunca tenha sido mesmo posto de lado) e Aquino aceita que
perceber a realidade é o ponto de partida para o conhecimento. A sociedade
torna-se mais complexa, surge uma burguesia comercial que precisa contrapor-se
à velha ordem das coisas, daí a busca de valorizar mais o humano e menos o
divino: surge o Renascimento. De um lado o racionalismo, com Descartes, Spinoza
e Leibniz, para os quais o conhecimento é fruto de raciocínios dedutivos e, de
outro, o empirismo com Bacon, Locke e Hume, defensores da importância da
percepção sensível e da experiência. Três alemães tentarão resolver o impasse:
Kant, Hegel e Husserl. Kant juntou os dois lados admitindo que há conhecimentos
tanto de uma como de outra origem; Hegel afirma que a Idéia se depura na ação e
volta ao ser humano, melhorada (idealismo) e Husserl, evitando dizer que nada
pode ser verdadeiramente sabido (ceticismo), propõe que entendamos o
conhecimento como fenômenos (sentidos que vêm à tona) dos quais devemos extrair
o não-essencial e deixar a razão mergulhar para revelar-se.
A relação do conhecimento é entre
sujeito e objeto, mas a verdade não está nem em um nem em outro: está na
relação em si. Esta se dá no tempo histórico e não é nem absoluta nem eterna,
não é individual mas coletiva, social. A verdade não é descoberta mas uma
construção cultural que visa construir referências que orientem o sentido da
ação humana e o sentido da existência.
Capítulo 3. A escola e a construção do
Conhecimento (pág. 101-128) Uma das questões
cruciais para as nossas práticas pedagógicas é a concepção sobre o conhecimento
e, no mais das vezes, este é entendido como algo pronto, acabado, sem conexão
com sua produção histórica. Também é tratado como algo mágico, que “cai dos
céus”, como nas lendas do “eureka” de Arquimedes ou do cientista como um ser
genial dentro de um laboratório. A mídia e os que não têm desenvolvido o
pensamento crítico deixam-se levar pela convicção de que é um outro mundo, ao
qual não terão acesso.
1. Relativizar: caminho para romper a
mitificação. Quando se nega aos alunos a compreensão
das condições culturais, históricas e sociais de produção do conhecimento,
reforça-se a mitificação e a sensação de impotência e incapacidade cognitiva.
Mesmo os conhecimentos ligados às ciências naturais e matemáticas precisam ser
relativizados: a beleza da abstração da matemática é absolutamente construída:
na natureza não há “1” ou uma matriz de 2o. grau ou uma derivação. Quando
ensinamos que “2+2=4”, inventamos o “2”, o “+”, o “=” e o “4”. Isso vale para
qualquer área. Em Estudos Sociais, usam-se mapas retangulares, com o meridiano
de Greenwich como centro divisor vertical. Estando no espaço, e um planeta
arredondado, isso é convenção. A linguagem absorve as convenções e perde-se no
tempo: antes da era Moderna, no Oriente a referência para alguém que estava no
caminho correto, mental ou não, era orientado/desorientado, quando deslocou-se
a hegemonia para o hemisfério norte, passou-se a dizer norteado/desnorteado.
Ambas as expressões hoje convivem... A lógica histórica é transformada em
padrão natural, como se o modo “normal” do mapa e do planeta deva ser aquele da
representação. Que sentido faria, para um aluno que “aprendeu” assim, que um
avião vá para o Japão, do Brasil, sem passar sobre a África e China ? ou que a
distância entre o cabo Dezhnyov (extremo da Ásia, na Rússia) e o cabo Príncipe
de Gales (extremo da América do Norte, no Alasca) é de 64 quilômetros, menos,
portanto, que a distância de São Paulo a Santos ? ou, em História, que como, no
livro, a história de Roma vem depois da Grécia, que as duas se desenvolveram em
períodos concomitantes ? ou que “achado
não é roubado”, nas ocupações portuguesas, inglesas e francesas da América do
Sul ?
A linguagem esconde suas origens:
“bárbaros” eram quaisquer “forasteiros” para os gregos e mais tarde para os
romanos - virou sinônimo de cruel e violento; “vândalo”, povo de origem
germânica que invadiu os domínios romanos, transmutou-se em brutalidade; Roma,
ao conquistar, está fazendo a “expansão do Império”, os povos que retomaram
parte de seus territórios fizeram uma “invasão bárbara”; ou então os
bandeirantes “desbravadores”, ou seria melhor dizer : pacificador à força dos
que reagiam à destruição de seu ambiente ? Os “selvagens” são conhecidos
através de filmes no qual se amansam os apaches, os sioux; que não eram
domesticados („de casa”):
2. Intencionalidade, erro e
pré-ocupação. Para Paulo Freire, “fazemos, logo pensamos; assim, existimos”, o que
reflete:
- que o saber pressupõe uma intencionalidade, o método é uma ferramenta,
portanto escolhida, portanto não é neutro;
- que o melhor método é aquele que
propuser a melhor aproximação com o objeto em estudo, o que não garante a
exatidão;
- que a aproximação da Verdade depende
da intencionalidade e esta é sempre social e histórica;
- que cada um e cada uma de nós é um
método, pois corpos e consciências são ferramentas de intencionalidade;
- que existimos assim: fazendo. E, porque fazemos, pensamos. E porque
pensamos, fazemos nossa existência.
Daí a importância do erro: o
conhecimento é resultado de processo e este não está isento de equívocos.
Investigar é bem diferente de receber uma revelação límpida. Errar é
decorrência da busca e só quem não busca, não erra. Isso não significa que se
deva incentivá-lo, mas que ser inteligente não é não errar; é saber como
aproveitar e lidar bem com os erros. Assim o foi com Edison e suas invenções,
com Wilmut e a ovelha Dolly, com Newton e a gravitação. Newton era um gênio
iluminado por uma maçã ou estava trabalhando pré-ocupado com o assunto há pelo
menos 20 anos, quando aconteceu?
Não há conhecimento significativo sem
pré-ocupação, ou sem partir delas. Fica claro que parte do desinteresse e
“indisciplina” pode ser atribuído ao distanciamento dos conteúdos em relação às
preocupações que os alunos trazem para a escola. Se “um dia você vai saber”
para que serve, então por que não esperar que esse dia chegue para
aprender?
3. Ritualismos, encantamentos e
princípios. Esse distanciamento do universo dos
alunos e conteúdos se mostra na avaliação da escola feita por docentes e
discentes. Dizemos : “eles não querem saber de nada”; dizem eles: “as aulas não
têm nada a ver comigo”. Conclusão nossa: “eles não gostam da escola”. Porém,
quase todas as crianças gostam da escola, o que, talvez, não gostem muito, é
das nossas aulas.
Nós os colocamos reclusos, numa fase de
excitação motora ou de “ferveção” de hormônios para ensinar coisas
“interessantíssimas” para eles: adjunto adnominal, afluentes, os reis de Roma,
mitocôndrias, raiz quadrada.... Não são poucas as vezes em que a sala se
assemelha a um local de culto religioso não-voluntário ou um teatro
desinteressante. Necessita-se silêncio obsequioso, um celebrante que domine o
culto e fiéis conscientes de sua fragilidade; o espaço obedece à hierarquia, o
celebrante à frente, com espaço e mobiliário próprios e os fiéis arrumados em
filas ou círculos, em móveis menores; é o celebrante que dá início ao culto, o
dirige e pode interrompê-lo; há partes repetitivas nos cultos; uma ponte de
ascendência sobre os participantes baseada no domínio de ferramentas do culto;
ao celebrante cabe ser paciente e compreensivo, uma bondade segura e assepsia
moral; aos demais, que se pronunciem apenas quando avocados, que se preparem
previamente para a exposição de mistérios, que confessem seus erros e
submetam-se às provações para a remissão. Como teatro, exige atenção contínua,
o ator principal deve estar acima dos outros para ser visto e ouvido; a platéia
tem noção do tema, mas desconhece o enredo; quando participa, não tem idéia do
porquê e para que o faz; o ator usa enredos de outros, recorrendo às vezes
ao ponto; nem sempre a peça é adequada à platéia ou tem para ela um
significado; porém, ela a assiste por hábito ou apatia, até o final. O lúdico e
a amorosidade são postos do lado de fora, não há prazer compartilhado.
A sala é um espaço para confrontos,
conflitos, rejeições, paixões, medos e saberes, para ser “humano”. A criação do
conhecimento (e recriação) não está em apenas falar sobre coisas prazerosas,
mas, principalmente, em falar prazerosamente sobre as coisas. Seriedade não é
sinônimo de tristeza; a alegria é resultante de um processo de encantamento
recíproco Partir das preocupações dos alunos não é o mesmo que nelas
permanecer; levar em conta é bem diferente de acatar passivamente. A ciência
pode estar sob controle da classe dominante, mas não é inútil, é uma produção
cultural coletiva cuja apropriação deve ser distribuída. O conhecimento é
relativo à história e à sociedade e não é neutro, mas político, porque envolve
o poder que advém por tê-lo.
Capítulo 4. Conhecimento escolar:
epistemologia e política (pág. 129-160) Quando Comenius fez uma
análise desalentada da educação, em 1632, apontou a ignorância, a inveja o
desamparo dos educadores como causas da “desordem escolar”. Como ultrapassar
esse olhar amargo sobre a escola, sobre o sentido social do que fazemos ? A
resposta depende da compreensão política que tivermos, da finalidade do nosso
trabalho pedagógico.
1. A relação sociedade/escola: alguns apelidos circunstanciais. Muito comum é o otimismo ingênuo, que
atribui à escola uma missão messiânica e onde o educador é um sacerdote,
portador de uma vocação. Na relação com a Sociedade, a compreensão é a de que a
Educação é a alavanca do desenvolvimento e do progresso. É otimista porque
valoriza a escola, mas é ingênua, pois atribui a ela uma autonomia absoluta na
sua inserção social e na capacidade de extinguir a pobreza e a miséria que não
foram por ela originalmente criadas. “Professor, o senhor não trabalha? Só dá
aulas ?” e a rejeição a movimentos corporativos são sinais dessa visão. A
escola é supra-social, desligada das classes sociais e neutra, o que configura
essa compreensão com a de um inocente útil. Predominou quase isoladamente até
meados dos anos 70, quando uma análise mais contundente passou a influenciar
mais o trabalho pedagógico.
Nessa época, apoiada na noção central
de que a educação tem, sim, a tarefa de servir ao Poder e é dele um instrumento
de dominação. Chamemos de pessimismo ingênuo. A escola é reprodutora da
desigualdade social, nela, o educador é um agente da ideologia dominante, um
funcionário das elites. A relação com a sociedade é que a escola é um aparelho
ideológico do Estado, determinada pelas elites sociais que controlam a
sociedade. À escola cabe “fazer a cabeça”, disciplinar, controlar e, para isso,
foi invadida por uma hierarquia do setor industrial, com diretores,
supervisores, inspetores, etc, fragmentando o poder interno. Assim, não há
nenhuma autonomia. O Pessimismo vem por conta do papel unicamente
discriminatório da Escola, desvalorizando-a como ferramenta para a conquista da
justiça social; a ingenuidade vem da sectarização, ao obscurecer a existência
de contradições no interior das instituições sociais, atribuindo-lhes um perfil
exclusivamente conservador.
No início dos anos 80, uma outra
concepção buscou resgatar a positividade das anteriores, o otimismo crítico,
que aponta para a natureza contraditória das instituições sociais, ou seja, a
educação teria uma função conservadora e inovadora ao mesmo tempo. Se a escola
pode, sim, servir para reproduzir as injustiças, é também capaz de ser
instrumento para mudanças. O educador tem um papel político-pedagógico e tem,
assim uma autonomia relativa e é a quem cabe construir coletivamente os espaços
efetivos de inovação.
2. A construção da inovação: inquietações contra o pedagocídio. Ao perguntar para estudantes de
Pedagogia ou do curso de Magistério “por que quer formar-se em educação?” a
quase totalidade das respostas costuma ser: porque gosto de crianças. É uma
resposta bela e afetiva, mas insuficiente. Gostar é imprescindível para a
tarefa pedagógica, mas além, é necessário que se qualifique para um exercício
socialmente competente da profissão. De qual criança gosta ? Aquela que tem
acesso à comida, saúde, lazer ou a que não tem recursos para o material
escolar, não sai de seu mundo imediato e que estuda na mesa da cozinha ? Quando
não nos qualificamos para atuar junto aos diferentes “ser criança” que
coexistem, aprofundam-se as diferenças e mantêm-se as injustiças. Reafirmemos o
óbvio: há um fortíssimo reflexo das condições de vida dos alunos no seu
desempenho escolar; há muitas décadas se discute isso, sem mudanças
significativas na nossa ação coletiva.
- o professor reclama de alunos que falam sempre muito alto. São
mal-educados ou os alunos economicamente favorecidos, que aprenderam a
compartilhar os espaços e a ser comedidos na altura do som são diferentes
daqueles oriundos da classe proletária, que, ao brincar e conversar na rua,
precisam gritar para ser ouvidos ?
- é importante que os pais acompanhem
as atividades escolares das crianças, porém, nas camadas populares, a grande
maioria dos pais sequer ultrapassou a 3a série do ensino fundamental.
- ao receber a lista de livros e
material a serem trazidos, muitos pais também ouvem que “sem todo o material é
impossível trabalhar”. Por um lado, uma obrigação pública de prover condições
para os cidadãos carentes, por outro, uma organização da nossa prática que leve
em conta as dificuldades reais da população.
Quando analisamos o fracasso escolar
(ou pedagocídio), na evasão e repetência, é usual apontar-se causas
extra-escolares. Se desejamos aproveitar a contradição entre o inovador e o
conservador de nossas práticas, devemos também verificar as causa
intra-escolares do fracasso: o uso não-reflexivo dos livros didáticos, passando
por conteúdos excessivamente abstratos e sem integração e chegando à
culpabilização dos alunos pelo próprio fracasso:
- “eles vêm sem saber nada”. e cada
professor reclama da série anterior, até que se chegue à vida uterina....
- “comigo não tem moleza, 20 de 40 vão
ficar” como se a avaliação da qualidade do trabalho fosse medida pelos
fracassos e os alunos fossem adversários a serem derrotados. Imagine um médico
dizer: “dos meus 40 pacientes, 20 vão morrer, comigo não tem moleza” ?
- “hoje eu peguei a molecada, dei uma prova de surpresa”. A avaliação é
um meio de correção de comportamento ?
Avaliação é diferente de auditoria:
avaliação visa identificar problemas e facilidades, para reorientar o processo
pedagógico; a auditoria objetiva localizar desvios para punir os envolvidos.
Uma cartilha que diga “Eva viu as uvas” só faz sentido para quem conhece uvas.
Explicar o encontro consonantal DR com “dromedário” ou LH com “lhama” só faz
sentido para quem conhece esses animais. Para quem não “sabe o que é”, não
serve pra essas coisas, é um “burro” que serve para usar as mãos, não a cabeça.
Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica. É contra a miopia de não
perceber os preconceitos e discriminações que devemos nos acautelar:
- a professora que divide as meninas e os meninos de cada lado da fila;
onde mais há filas assim ?
- a figura da família como é
representada ? A mulher serve. Isso aparece na cartilha, na mídia, na
propaganda, no “suplemento feminino” do jornal (que é “coisa de homem”, então)
- o corpo humano: um desenho de um
homem (ou mulher) branco, alto, forte, olhos claros, e a criança olha para si,
para os lados e para quem conhece....
- a festa junina que considera fantasia ser remendado, ter dentes falhos
e o falar incorreto. Poucas escolas explicam a origem das festas e sua
importância para o campesino de resguardar sua dignidade; que a falha do dente
é sofrimento; que produzem comida e passam fome. Não se trata de fazer discurso
político às criancinhas, mas de não omitir a realidade e achar que a vida rural
é uma delícia .
Afirma Paulo Freire que no exercício
crítico é que nos predispomos a uma atitude aberta ao outro e à realidade, ao
mesmo tempo em que desconfiamos das certezas. O melhor caminho para o aprender
a pensar certo é manter-se alerta, ouvir com respeito, por isso de forma
exigente, é estar exposto às diferenças e recusar posições dogmáticas. A crise
da educação não é uma fatalidade, mas construção. Ao analisar o passado de
educação, é preciso distinguir entre o tradicional – que deve ser resguardado
por sua eficiência pedagógica e o arcaico – que é o ultrapassado e que não tem
mais aplicabilidade em novas circunstâncias. É preciso fugir a vícios, tais
como o vício do círculo vicioso (em que os alunos sem base tornam-se
professores sem base), do “faço o que eu posso” (limitador).
3. Sobre idéias e pães. Dois índios xavantes, nos anos 70, pediram para ir embora, não apenas do
mercado aonde foram levados (o velho prédio do Mercado Central), mas da cidade.
Não tiveram uma revolta ética, mas cultural: não conseguiram compreender uma
situação tão “normal” como a de uma criança ter fome e, não tendo dinheiro,
comer comida estragada do chão, rodeada de comida “boa”. Não compreenderam
nossa organização porque não foram formados aqui, nas nossas instituições
sociais, nem nas nossas escolas. A maior tarefa dos educadores e educadoras
está na junção entre a epistemologia e a política, na destruição do “aqui é
assim”. É uma ética da rebeldia, que reafirme nossa possibilidade de dizer
“não” e que valorize a inconformidade. Só quem é capaz de dizer o não pode
dizer o sim, pode escolher. Ser humano é ser junto: a minha liberdade acaba
quando acaba a do outro: se algum humano ou humana não é livre, ninguém é
livre. Porque somos educadores ? Por que dedicarmos toda uma existência a essa
atividade cansativa, econômica e socialmente prejudicada e desvalorizada,
entremeada de percalços ? Por causa da paixão. A paixão pela idéia irrecusável
de que gente foi feita para ser feliz. Paixão pela inconformidade de as coisas
serem como são; paixão pela derrota da desesperança e pela ideia de tornar as
pessoas melhores, paixão pelo futuro.
Nosso “negócio” é o futuro e assim, torna-se absurdo dizer que quanto
mais se vive, mais velho se fica. Para isso, teríamos de ter nascido prontos e
ir desgastando. Isso acontece com objetos, não com humanos. Nascemos
não-prontos e vamos nos fazendo, o mais velho de mim está no passado, hoje eu
sou a minha versão mais nova (”revista e ampliada”). Como parteiro do futuro, o
educador procura realizar as possibilidades que a educação tem de colaborar na
conquista de uma realidade social superadora das desigualdades. Mais que uma
espera, é um escavar no hoje de nossas práticas à procura daquilo que hoje pode
ser feito. Nosso tempo é este em que hoje se gesta o amanhã, do qual não
possuímos certezas, mas possibilidades. É nessa paixão pelo humano onde se dá o
encontro do sonho de um Conhecimento como ferramenta da Liberdade e de um Poder
como amálgama da convivência igualitária. Um ditado chinês diz que se dois
homens vêm andando numa estrada, cada um com um pão e, ao se encontrarem,
trocam os pães, cada homem vai embora com um; porém, se os dois carregam uma
ideia, e ao se encontrarem, as trocarem, cada homem vai embora com duas. Quem
sabe é esse mesmo o sentido do nosso fazer: repartir idéias, para todos terem
pão...
Fonte: Para os Professores acesso em 08/08/2014.
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