NENHUM TEMA mais
adequado para constituir-se em objeto desta primeira carta a quem ousa ensinar
do que a significação crítica desse ato, assim como a significação igualmente
crítica de aprender. É que não existe ensinar sem aprender e
com isto eu quero dizer mais do que diria se dissesse que o ato de ensinar
exige a existência de quem ensina e de quem aprende. Quero dizer que ensinar e
aprender se vão dando de tal maneira que quem ensina aprende, de um lado,
porque reconhece um conhecimento antes aprendido e, de outro, porque, observado
a maneira como a curiosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender o
ensinando-se, sem o que não o aprende, o ensinante se ajuda a descobrir
incertezas, acertos, equívocos.
O aprendizado do
ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através da retificação que o
aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do ensinante ao ensinar se
verifica à medida em que o ensinante, humilde, aberto, se ache permanentemente
disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em que procura
envolver-se com a curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos e veredas,
que ela os faz percorrer. Alguns desses caminhos e algumas dessas veredas, que
a curiosidade às vezes quase virgem dos alunos percorre, estão grávidas de sugestões,
de perguntas que não foram percebidas antes pelo ensinante. Mas agora, ao
ensinar, não como um burocrata da mente, mas reconstruindo os
caminhos de sua curiosidade — razão por que seu corpo
consciente, sensível, emocionado, se abre às adivinhações dos
alunos, à sua ingenuidade e à sua criatividade —o ensinante que
assim atua tem, no seu ensinar, um momento rico de seu aprender. O ensinante
aprende primeiro a ensinar mas aprende a ensinar ao ensinar algo que é
reaprendido por estar sendo ensinado.
O fato, porém, de que
ensinar ensina o ensinante a ensinar um certo conteúdo não deve significar, de
modo algum, que o ensinante se aventure a ensinar sem competência para fazê-lo.
Não o autoriza a ensinar o que não sabe. A responsabilidade ética, política e
profissional do ensinante lhe coloca o dever de se preparar, de se capacitar,
de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige
que sua preparação, sua capacitação, sua formação se tornem processos
permanentes. Sua experiência docente, se bem percebida e bem vivida, vai
deixando claro que ela requer uma formação permanente do ensinante. Formação
que se funda na análise crítica de sua prática.
Partamos da
experiência de aprender, de conhecer, por parte de quem se prepara para a
tarefa docente, que envolve necessariamente estudar. Obviamente,
minha intenção não é escrever prescrições que devam ser rigorosamente seguidas,
o que significaria uma chocante contradição com tudo o que falei até agora.
Pelo contrário, o que me interessa aqui, de acordo com o espírito mesmo deste
livro, é desafiar seus leitores e leitoras em torno de certos pontos ou
aspectos, insistindo em que há sempre algo diferente a fazer na nossa
cotidianidade educativa, quer dela participemos como aprendizes, e portanto
ensinantes, ou como ensinantes e, por isso, aprendizes também.
Não gostaria, assim,
sequer, de dar a impressão de estar deixando absolutamente clara a questão do estudar,
do ler, do observar, do reconhecer as
relações entre os objetos para conhecê-los. Estarei tentando clarear alguns dos
pontos que merecem nossa atenção na compreensão crítica desses processos.
Comecemos por estudar,
que envolvendo o ensinar do ensinante, envolve também de um
lado, a aprendizagem anterior e concomitante de quem ensina e a aprendizagem do
aprendiz que se prepara para ensinar amanhã ou refaz seu saber para melhor
ensinar hoje ou, de outro lado, aprendizagem de quem, criança ainda, se acha
nos começos de sua escolarização.
Enquanto preparação
do sujeito para aprender, estudar é, em primeiro lugar, um que-fazer crítico,
criador, recriador, não importa que eu nele me engaje através da leitura de um
texto que trata ou discute um certo conteúdo que me foi proposto pela escola ou
se o realizo partindo de uma reflexão crítica sobre um certo acontecimentos
social ou natural e que, como necessidade da própria reflexão, me conduz à
leitura de textos que minha curiosidade e minha experiência intelectual me
sugerem ou que me são sugeridos por outros.
Assim, em nível de
uma posição crítica, a que não dicotomiza o saber do senso comum do outro
saber, mais sistemático, de maior exatidão, mas busca uma síntese dos
contrários, o ato de estudar implica sempre o de ler, mesmo que neste não se
esgote. De ler o mundo, de ler a palavra e assim ler a leitura do
mundo anteriormente feita. Mas ler não é puro entretenimento nem tampouco um
exercício de memorização mecânica de certos trechos do texto.
Se, na verdade, estou
estudando e estou lendo seriamente, não posso ultra-passar uma página se não
consegui com relativa clareza, ganhar sua significação. Minha saída não está em
memorizar porções de períodos lendo mecanicamente duas, três, quatro vezes
pedaços do texto fechando os olhos e tentando repeti-las como se sua fixação
puramente maquinal me desse o conhecimento de que preciso.
Ler é uma operação
inteligente, difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou estuda
autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a
forma crítica de ser ou de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da
leitura, sujeito do processo de conhecer em que se acha. Ler é procurar buscar
criar a compreensão do lido; daí, entre outros pontos fundamentais, a
importância do ensino correto da leitura e da escrita. É que ensinar a ler é
engajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão. Da
compreensão e da comunicação.
E a experiência da compreensão será
tão mais profunda quanto sejamos nela capazes de associar, jamais dicotomizar,
os conceitos emergentes da experiência escolar aos que
resultam do mundo da cotidianidade. Um exercício crítico sempre exigido pela
leitura e necessariamente pela escuta é o de como nos darmos facilmente à
passagem da experiência sensorial que caracteriza a
cotidianidade à generalização que se opera na linguagem
escolar e desta ao concreto tangível. Uma das formas de realizarmos este
exercício consiste na prática que me venho referindo como "leitura da
leitura anterior do mundo", entendendo-se aqui como "leitura do
mundo" a "leitura" que precede a leitura da palavra e que
perseguindo igualmente a compreensão do objeto se faz no domínio da
cotidianidade. A leitura da palavra, fazendo-se também em busca da compreensão
do texto e, portanto, dos objetos nele referidos, nos remete agora à leitura
anterior do mundo. O que me parece fundamental deixar claro é que a leitura do
mundo que é feita a partir da experiência sensorial não basta. Mas, por outro
lado, não pode ser desprezada como inferior pela leitura feita
a partir do mundo abstrato dos conceitos que vai da generalização ao tangível.
Certa vez, uma
alfabetizanda nordestina discutia, em seu círculo de cultura, uma codificação (1) que representava um homem que, trabalhando o
barro, criava com as mãos, um jarro. Discutia-se, através da
"leitura" de uma série de codificações que, no fundo, são
representações da realidade concreta, o que é cultura. O conceito de cultura já
havia sido apreendido pelo grupo através do esforço da compreensão que
caracteriza a leitura do mundo e/ou da palavra. Na sua experiência
anterior, cuja memória ela guardava no seu corpo, sua compreensão do
processo em que o homem, trabalhando o barro, criava o jarro, compreensão
gestada sensorialmente, lhe dizia que fazer o jarro era uma forma de trabalho
com que, concretamente, se sustentava. Assim como o jarro era apenas o objeto,
produto do trabalho que, vendido, viabilizava sua vida e a de sua família.
Agora, ultrapassando
a experiência sensorial, indo mais além dela, dava um passo fundamental:
alcançava a capacidade de generalizar que caracteriza a
"experiência escolar". Criar o jarro como o trabalho transformador
sobre o barro não era apenas a forma de sobreviver, mas também de fazer cultura,
de fazer arte. Foi por isso que, relendo sua leitura anterior do
mundo e dos que-fazeres no mundo, aquela alfabetizanda nordestina disse segura
e orgulhosa: "Faço cultura. Faço isto".
Paulo Reglus Neves
Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921 em
Recife, Pernambuco. Aprendeu a ler e a escrever com os pais, à sombra das
árvores do quintal da casa em que nasceu. Tinha oito anos quando a família
teve que se mudar para Jaboatão, a 18 km de Recife. Aos 13 anos perdeu o pai
e seus estudos tiveram que ser adiados. Entrou no ginásio com 16 anos. Aos 20
conseguiu uma vaga na Faculdade de Direito do Recife.
O estudo da linguagem do povo foi um dos pontos de partida da
elaboração pedagógica de Paulo Freire, para o que também foi muito
significativo o seu envolvimento com o Movimento de Cultura Popular (MCP) do
Recife. Foi um dos fundadores do Serviço de Extensão Cultural da Universidade
do Recife e seu primeiro diretor. Através desse trabalho elaborou os
primeiros estudos de um novo método de alfabetização, que expôs em 1958. As
primeiras experiências do MétodoPaulo Freire começaram na
cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, onde 300 trabalhadores
foram alfabetizados em 45 dias. No ano seguinte, foi convidado pelo
presidente João Goulart para repensar a alfabetização de adultos em âmbito
nacional. O golpe militar interrompeu os trabalhos e reprimiu toda a
mobilização popular.
Paulo Freire foi preso, acusado de comunista. Foram 16 anos de exílio,
dolorosos, mas também muito produtivos: uma estadia de cinco anos no Chile
como consultor da Unesco no Instituto de Capacitação e Investigação em
Reforma Agrária; uma mudança para Genebra, na Suíça em 1970, para trabalhar
como consultor do Conselho Mundial de Igejas, onde desenvolveu programas de
alfabetização para a Tanzânia e Guiné-Bissau, e ajudou em campanhas no Peru e
Nicaraguá; em 1980, voltou definitivamente ao país, passando a ser professor
da PUC-SP e da Univesidade de Campinas (Unicamp). Uma das experiências
significativas de Paulo Freire foi ter trabalhado como secretário da Educação
da Prefeitura de São Paulo, na gestão Luiza Erundina (PT), entre 1989 e 1991.
Paulo Freire morreu no dia 2 de maio de 1997, aos 76 anos de idade, em plena
atividade de educador e de pensador. Estava casado com Ana Maria (Nita)
Araújo Freire, também educadora.
É autor dos livros Educação como prática da libedade.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; Pedagogia do oprimido. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1970; Extensão ou comunicação? Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1971; Ação cultural para a liberdade e outros
escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; Cartas à
Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1977;Educação e mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1979; A importância do ato de ler em três artigos que se completam.
São Paulo, Cortez, 1982; A Educação na cidade. São Paulo, Cortez,
1991; Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992; Política e educação. São
Paulo, Cortez, 1993; Professora sim, Tia não: cartas a quem ousa
ensinar. São Paulo, Olho D'Água, 1993; Cartas a Cristina. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1994; À sombra desta mangueira. São
Paulo, Olho D'Água, 1995. Pedagogia de autonomia. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1996. Pedagogia da indignação. São Paulo, Editora da
Unesp, 2000.
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Noutra ocasião
presenciei experiência semelhante do ponto de vista da inteligência do
comportamento das pessoas. Já me referi a este fato em outro trabalho mas não
faz mal que o retome agora. Me achava na Ilha de São Tomé, na África
Ocidental, no Golfo da Guiné. Participava com educadores e
educadoras nacionais, do primeiro curso de formação para alfabetizadores.
Havia sido escolhido
pela equipe nacional um pequeno povoado, Porto Mont, região de pesca, para ser
o centro das atividades de formação. Havia sugerido aos nacionais que a
formação dos educadores e educadoras se fizesse não seguindo certos métodos
tradicionais que separam prática de teoria. Nem tampouco através de nenhuma
forma de trabalho essencialmente dicotomizante de teoria e prática e que ou
menospreza a teoria, negando-lhe qualquer importância, enfatizando
exclusivamente a prática, a única a valer, ou negando a práticafixando-se
só na teoria. Pelo contrário, minha intenção era que, desde o
começo do curso, vivêssemos a relação contraditória entre prática e teoria, que
será objeto de análise de uma de minhas cartas.
Recusava, por isso
mesmo, uma forma de trabalho em que fossem reservados os primeiros momentos do
curso para exposições ditas teóricas sobre matéria fundamental de formação dos
futuros educadores e educadoras. Momento para discursos de algumas pessoas, as
consideradas mais capazes para falar aos outros.
Minha convicção era
outra. Pensava numa forma de trabalho em que, numa única manhã, se falasse de
alguns conceitos-chave — codificação, decodificação, por
exemplo — como se estivéssemos num tempo de apresentações,
sem, contudo, nem de longe imaginar que as apresentações de
certos conceitos fossem já suficientes para o domínio da compreensão em torno
deles. A discussão crítica sobre a prática em que se engajariam é o que o
faria.
Assim, a ideia
básica, aceita e posta em prática, é que os jovens que se preparariam para a
tarefa de educadoras e educadores populares deveriam coordenar a discussão em
torno de codificações num círculo de cultura com 25 participantes. Os
participantes do círculo de cultura estavam cientes de que se tratava de um
trabalho de afirmação de educadores. Discutiu-se com eles antes sua tarefa
política de nos ajudar no esforço de formação, sabendo que iam trabalhar com
jovens em pleno processo de sua formação. Sabiam que eles, assim como os jovens
a serem formados, jamais tinham feito o que iam fazer.
A única diferença que os
marcava é que os participantes liam apenas o mundo enquanto os jovens a serem
formados para a tarefa de educadores liam já a palavra também. Jamais, contudo,
haviam discutido uma codificação assim como jamais haviam tido a mais mínima
experiência alfabetizando alguém.
Em cada tarde do
curso com duas horas de trabalho com os 25 participantes, quatro candidatos
assumiam a direção dos debates. Os responsáveis pelo curso assistiam em
silêncio, sem interferir, fazendo suas notas. No dia seguinte, no seminário de
avaliação de formação, de quatro horas, se discutiam os equívocos, os erros e
os acertos dos candidatos, na presença do grupo inteiro, desocultando-se com
eles a teoria que se achava na sua prática.
Dificilmente se
repetiam os erros e os equívocos que haviam sido cometidos e analisados. A
teoria emergiamolhada da prática vivida.
Foi exatamente numa
das tardes de formação que, durante a discussão de uma codificação que
retratava Porto Mont, com suas casinhas alinhadas à margem da praia, em frente
ao mar, com um pescador que deixava seu barco com um peixe na mão, que dois dos
participantes, como se houvessem combinado, se levantaram, andaram até a janela
da escola em que estávamos e olhando Porto Mont lá longe, disseram, de frente
novamente para a codificação que representava o povoado:
"É. Porto Mont é
assim e não sabíamos".
Até então, sua
"leitura" do lugarejo, de seu mundo particular, uma
"leitura" feita demasiadamente próxima do "texto", que era
o contexto do povoado, não lhes havia permitido ver Porto Mont
como ele era. Havia uma certa "opacidade" que cobria e encobria Porto
Mont. A experiência que estavam fazendo de "tomar distância" do
objeto, no caso, da codificação de Porto Mont, lhes
possibilitava uma nova leitura mais fiel ao "texto", quer dizer, aocontexto de
Porto Mont. A "tomada de distância" que a "leitura" da
codificação lhes possibilitou os aproximoumais de Porto Mont como
"texto" sendo lido. Esta nova leitura refez a leitura anterior, daí
que hajam dito: "É. Porto Mont é assim e não sabíamos". Imersos na
realidade de seu pequeno mundo, não eram capazes de vê-la. "Tomando
distância" dela, emergiram e, assim, a viram como até
então jamais a tinham visto.
Estudar é desocultar,
é ganhar a compreensão mais exata do objeto, é perceber suas
relações com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do estudo, se
arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria.
Por isso também é que ensinar não
pode ser um puro processo, como tanto tenho dito, de transferência de
conhecimento do ensinante ao aprendiz. Transferência mecânica de que resulte a
memorização maquinal que já critiquei. Ao estudo crítico corresponde um ensino
igualmente crítico que demanda necessariamente uma forma crítica de compreender
e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo, leitura do contexto.
A forma crítica de
compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo está, de um
lado, na não negação da linguagem simples, "desarmada", ingênua, na
sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados na cotidianidade,
no mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao que
se chama de "linguagem difícil", impossível, porque desenvolvendo-se
em torno de conceitos abstratos. Pelo contrário, a forma crítica de compreender
e de realizar a leitura do texto e a do contexto não exclui nenhuma da duas
formas de linguagem ou de sintaxe. Reconhece, todavia, que o escritor que usa a
linguagem científica, acadêmica, ao dever procurar tornar-se acessível, menos
fechado, mais claro, menos difícil, mais simples, não pode ser simplista.
Ninguém que lê, que
estuda, tem o direito de abandonar a leitura de um texto como difícil porque
não entendeu o que significa, por exemplo, a palavra epistemologia.
Assim como um
pedreiro não pode prescindir de um conjunto de instrumentos de trabalho, sem os
quais não levanta as paredes da casa que está sendo construída, assim também o
leitor estudioso precisa de instrumentos fundamentais, sem os quais não pode
ler ou escrever com eficácia. Dicionários , entre eles o etimológico, o de regimes de
verbos, o de regimes de substantivos e adjetivos, o filosófico, o de sinônimos
e de antônimos, enciclopédias. A leitura comparativa de texto, de outro autor
que trate o mesmo tema cuja linguagem seja menos complexa.
Usar esses
instrumentos de trabalho não é, como às vezes se pensa, uma perda de tempo. O
tempo que eu uso quando leio ou escrevo ou escrevo e leio, na consulta de
dicionários e enciclopédias, na leitura de capítulos, ou trechos de livros que
podem me ajudar na análise mais crítica de um tema — é tempo
fundamental de meu trabalho, de meu ofício gostoso de ler ou de escrever.
Enquanto leitores,
não temos o direito de esperar, muito menos de exigir, que os escritores façam
sua tarefa, a de escrever, e quase a nossa, a de compreender o escrito,
explicando a cada passo, no texto ou numa nota ao pé da página, o que quiseram
dizer com isto ou aquilo. Seu dever, como escritores, é escrever simples,
escrever leve, é facilitar e não dificultar a compreensão do leitor, mas
não dar a ele as coisas feitas e prontas.
A compreensão do que
se está lendo, estudando, não estala assim, de repente, como se fosse um
milagre. A compreensão é trabalhada, é forjada, por quem lê, por quem estuda
que, sendo sujeito dela, se deve instrumentar para melhor fazê-la. Por isso
mesmo, ler, estudar, é um trabalho paciente,
desafiador, persistente.
Não é tarefa para
gente demasiado apressada ou pouco humilde que, em lugar de assumir suas
deficiências, as transfere para o autor ou autora do livro, considerado como
impossível de ser estudado.
É preciso deixar
claro, também, que há uma relação necessária entre o nível do conteúdo do livro
e o nível da atual formação do leitor. Estes níveis envolvem a experiência
intelectual do autor e do leitor. A compreensão do que se lê tem que ver com
essa relação. Quando a distância entre aqueles níveis é demasiado grande,
quanto um não tem nada que ver com o outro, todo esforço em busca da compreensão é
inútil. Não está havendo, neste caso, uma consonância entre o indispensável
tratamento dos temas pelo autor do livro e a capacidade de apreensão por parte
do leitor da linguagem necessária àquele tratamento. Por isso mesmo é que
estudar é uma preparação para conhecer, é um exercício paciente e impaciente de
quem, não pretendendo tudo de uma vez, luta para fazer a vez de
conhecer.
A questão do uso
necessário de instrumentos indispensáveis à nossa leitura e ao nosso trabalho
de escrever levanta o problema do poder aquisitivo do estudante e das
professoras e professores em face dos custos elevados para obter dicionários
básicos da língua, dicionários filosóficos etc. Poder consultar todo esse
material é um direito que têm alunos e professores a que corresponde o dever
das escolas de fazer-lhes possível a consulta, equipando ou criando suas
bibliotecas, com horários realistas de estudo. Reivindicar esse material é um
direito e um dever de professores e estudantes.
Gostaria de voltar a
algo a que fiz referência anteriormente: a relação entre ler e escrever,
entendidos como processos que não se podem separar. Como processos que se devem
organizar de tal modo que ler e escrever sejam
percebidos como necessários para algo, como sendo alguma coisa de que a
criança, como salientou Vygotsky, necessita e nós também.
Em primeiro lugar, a
oralidade precede a grafia mas a traz em si desde o primeiro momento em que os
seres humanos se tornaram socialmente capazes de ir exprimindo-se através de
símbolos que diziam algo de seus sonhos, de seus medos, de sua experiência
social, de suas esperanças, de suas práticas.
Quando aprendemos a ler,
o fazemos sobre a escrita de alguém que antes aprendeu a ler e a escrever. Ao
aprender a ler, nos preparamos para imediatamente escrever a fala que
socialmente construímos.
Nas culturas
letradas, sem ler e sem escrever, não se pode estudar, buscar conhecer,
apreender a substantividade do objeto, reconhecer criticamente a razão de ser
do objeto.
Um dos equívocos que
cometemos está em dicotomizar ler de escrever,
desde o começo da experiência em que as crianças ensaiam seus primeiros passos
na prática da leitura e da escrita, tomando esses processos como algo desligado
do processo geral de conhecer.
Essa dicotomia entre ler e escrever nos
acompanha sempre, como estudantes e professores. "Tenho uma dificuldade
enorme de fazer minha dissertação. Não sei escrever", é a
afirmação comum que se ouve nos cursos de pós-graduação de que tenho
participado. No fundo, isso lamentavelmente revela o quanto nos achamos longe
de uma compreensão crítica do que é estudar e do que é ensinar.
É preciso que nosso
corpo, que socialmente vai se tornando atuante, consciente, falante, leitor e
"escritor" se aproprie criticamente de sua forma de vir sendo que faz
parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se. Quer dizer, é
necessário que não apenas nos demos conta de como estamos sendo mas nos
assumamos plenamente com estes "seres programados, mas para
aprender", de que nos fala François Jacob .
É necessário, então, que aprendamos a
aprender, vale dizer, que entre outras coisas, demos à linguagem oral e
escrita, a seu uso, a importância que lhe vem sendo cientificamente
reconhecida.
Aos que estudamos,
aos que ensinamos e, por isso, estudamos também, se nos impõe, ao lado da
necessária leitura de textos, a redação de notas, de fichas de leitura, a
redação de pequenos textos sobre as leituras que fazemos. A leitura de bons
escritores, de bons romancistas, de bons poetas, dos cientistas, dos filósofos
que não temem trabalhar sua linguagem a procura da boniteza, da simplicidade e
da clareza .
Se nossas escolas, desde
a mais tenra idade de seus alunos se entregassem ao trabalho de estimular neles
o gosto da leitura e o da escrita, gosto que continuasse a ser estimulado
durante todo o tempo de sua escolaridade, haveria possivelmente um número
bastante menor de pós-graduandos falando de sua insegurança ou de sua
incapacidade de escrever.
Se estudar, para nós,
não fosse quase sempre um fardo, se ler não fosse uma obrigação
amarga a cumprir, se, pelo contrário, estudar e ler fossem fontes de alegria e
de prazer, de que resulta também o indispensável conhecimento com que nos
movemos melhor no mundo, teríamos índices melhor reveladores da qualidade de
nossa educação.
Este é um esforço que
deve começar na pré-escola, intensificar-se no período da alfabetização e
continuar sem jamais parar.
A leitura de Piaget,
de Vygotsky, de Emilia Ferreiro, de Madalena F. Weffort, entre outros, assim
como a leitura de especialistas que tratam não propriamente da alfabetização
mas do processo de leitura como Marisa Lajolo e Ezequiel T. da Silva é de
indiscutível importância.
Pensando na relação
de intimidade entre pensar, ler e escrever e na necessidade que temos de viver
intensamente essa relação, sugeriria a quem pretenda rigorosamente
experimentá-la que, pelo menos, três vezes por semana, se entregasse à tarefa
de escrever algo. Uma nota sobre uma leitura, um comentário em torno de um
acontecimento de que tomou conhecimento pela imprensa, pela televisão, não
importa. Uma carta para destinatário inexistente. É interessante datar os
pequenos textos e guardá-los e dois ou três meses depois submetê-los a uma
avaliação crítica.
Ninguém escreve se
não escrever, assim como ninguém nada se não nadar.
Ao deixar claro que o
uso da linguagem escrita, portanto o da leitura, está em relação com o desenvolvimento
das condições materiais da sociedade, estou sublimando que minha posição não é idealista.
Recusando qualquer
interpretação mecanicista da História, recuso igualmente a idealista.
A primeira reduz a consciência à pura cópia das estruturas materiais da
sociedade; a segunda submete tudo ao todo poderosismo da consciência. Minha
posição é outra. Entendo que estas relações entre consciência e mundo são
dialéticas.
O que não é correto,
porém, é esperar que as transformações materiais se processem para que depois
comecemos a encarar corretamente o problema da leitura e da escrita.